Para ministros, o reconhecimento de pessoas, fotográfico ou pessoal, sem o procedimento do art. 226 do CPP é campo fértil para erro judicial.
Da Redação
terça-feira, 8 de fevereiro de 2022
Atualizado em 9 de fevereiro de 2022 10:41
Usando toucas ninja, que deixam apenas os olhos de fora, dois indivíduos armados tentam roubar a carga de um caminhão. Um dos condutores do veículo, após assistir às imagens de outro roubo, declara não ter dúvidas sobre um dos criminosos: pelos olhos, e pelo fato de usar roupa social, é a mesma pessoa. A certeza aumenta quando ele ouve uma gravação com a voz do suspeito. Em juízo, sublinha sua convicção ao dizer que reconheceu, em fotos apresentadas pela polícia, uma tatuagem que o assaltante teria no braço – embora não houvesse mencionado esse detalhe no inquérito e o indivíduo que aparece no vídeo do outro roubo estivesse com os braços cobertos. O suspeito assim identificado é condenado a mais de cinco anos pela tentativa de roubo da carga.
Ao julgar o HC 680.416, em setembro de 2021, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca considerou o reconhecimento “questionável” e, na falta de outras provas que sustentassem a condenação, absolveu o réu – providência indicada pelo próprio Ministério Público Federal.
A decisão é uma das quase 90 já proferidas pelo STJ desde que a 6ª turma, reformulando a jurisprudência até então predominante, assentou o entendimento de que a inobservância do artigo 226 do CPP invalida o reconhecimento do acusado feito na polícia, não podendo servir de base para a sua condenação, nem mesmo se for confirmado na fase judicial.
(Imagem: Arte Migalhas)
Reconhecimento de pessoas é campo fértil para erro judicial, diz STJ.(Imagem: Arte Migalhas)
Da data do julgamento (outubro de 2020) até dezembro de 2021, houve pelo menos 28 acórdãos das duas turmas de Direito Penal e 61 decisões monocráticas que absolveram o réu ou revogaram a prisão preventiva em razão de graves dúvidas sobre o reconhecimento feito em desacordo com as exigências do CPP, as quais – nas palavras do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do HC 598.886 – “constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime”. Os números constam de um levantamento produzido pelo gabinete do ministro.
Quase um ano depois daquele julgamento, o CNJ instituiu, em setembro de 2021, um grupo de trabalho com o objetivo de propor nova regulamentação para o reconhecimento pessoal em processos penais. Em janeiro, o CNJ lançou uma chamada pública para a seleção de artigos científicos sobre o tema, que serão publicados em coletânea digital e poderão subsidiar os estudos do grupo de trabalho.
Prendam o Messi!
O comerciante chega ao bar de manhã e percebe que houve um furto. Examinando a gravação da câmera de segurança, verifica que o ladrão usava camiseta do Barcelona com o número 10 nas costas. Informada, a polícia faz rondas e prende um indivíduo com a camisa do time espanhol, com o mesmo número ainda utilizado naquele janeiro de 2021 pelo craque Lionel Messi. Os bens furtados não são encontrados, mas o suspeito – que diz ter achado a camiseta jogada na rua – é condenado, com base na roupa e no porte físico.
No HC 686.317, o desembargador convocado Jesuíno Rissato acompanhou o parecer do Ministério Público Federal e declarou a absolvição do réu, destacando que a decisão condenatória “ou se baseou em reconhecimento de uma camiseta ou se fundou em reconhecimento indireto de imagens de vídeo (não periciadas e sobre fatos por ninguém presenciados)”.
Até o julgamento do HC 598.886, prevalecia a tese de que a validade do reconhecimento do autor de um crime não dependia, obrigatoriamente, do procedimento do artigo 226 do CPP, o qual determina que o suspeito – sempre que possível – seja colocado ao lado de outras pessoas com alguma semelhança, para que a vítima ou testemunha o aponte. Entendia-se, no STJ e em outros tribunais, que o dispositivo legal trazia recomendações para as autoridades, e não uma regra indispensável.
As notícias – cada vez mais frequentes – de prisões injustas motivadas por erros de reconhecimento influenciaram o tribunal a adotar uma posição mais condizente com a natureza falível da memória humana. “O valor probatório do reconhecimento deve ser visto com muito cuidado, justamente em razão da sua alta suscetibilidade de falhas e distorções. Por possuir, quase sempre, um alto grau de subjetividade e de falibilidade é que esse meio de prova deve ser visto com reserva”, declarou Rogerio Schietti.
Condenado com 70% de certeza
Após ter sido roubada dentro de uma pizzaria, a vítima olha a foto apresentada por um vizinho como sendo a do motorista imprudente que causou um acidente fatal. Reconhece o assaltante. Vai à delegacia e, diante de uma foto do suspeito, reafirma suas impressões. Mais de três anos depois, estando frente a frente com o acusado na audiência judicial, declara que ele é 70% semelhante àquele homem de capuz e boné que lhe apontou uma arma na pizzaria.
Para o ministro Ribeiro Dantas, relator do REsp 1.914.998, a condenação do réu foi amparada unicamente no reconhecimento fotográfico feito na delegacia, sem a observância das disposições do artigo 226 do CPP – prova que não se confirmou em juízo, pois a vítima disse não ter convicção para identificar o acusado, como admitido pelo próprio acórdão que reformou a sentença absolutória.
(Imagem: STJ)
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